Ensaio: Tolkien, Filosofia e Valores Universais: Entre Interpretação e Essência
(Este artigo foi retirado do Prefácio e do Capítulo 1 de "Ensaio: Tolkien, Filosofia e Valores Universais: Entre Interpretação e Essência")
Prefácio
Há trinta anos, fundei a Sociedade Tolkien Brasileira movido por um sentimento que ainda hoje permanece vivo em mim: a certeza de que a obra de J.R.R. Tolkien é muito mais do que literatura fantástica. É um universo mítico que carrega em si valores éticos, morais e humanos capazes de atravessar gerações e culturas.
Desde então, a STB tornou-se espaço de encontro, estudo, amizade e celebração da Terra-média. Em cada leitura compartilhada, em cada encontro de fãs, em cada debate acadêmico ou cultural, percebemos que Tolkien não fala apenas de elfos, hobbits e anéis. Ele fala de nós — das nossas lutas, das nossas fraquezas, das nossas esperanças.
Este livro nasce justamente dessa percepção. Não é um tratado filosófico, nem uma tentativa de reduzir Tolkien a uma escola de pensamento específica. É, antes, uma jornada reflexiva. Uma leitura que busca mostrar como sua obra, através da simplicidade do mito, dialoga com as grandes perguntas que filósofos, poetas e pensadores vêm fazendo há milênios.
Aqui, revisitamos O Hobbit e O Senhor dos Anéis à luz de Platão, Aristóteles, Kierkegaard, Nietzsche, Camus, Hannah Arendt e tantos outros. Não para forçar interpretações, mas para revelar ecos. Pois os mitos de Tolkien, assim como a filosofia, falam da condição humana — da amizade, da coragem, da corrupção, da esperança.
Mais do que isso, este livro é também um testemunho da força da comunidade. Assim como a Sociedade do Anel só triunfou unida, também nós, leitores e amantes da obra de Tolkien, somos sustentados pelo companheirismo e pela partilha. A STB, ao longo destas três décadas, mostrou que as histórias não são apenas para serem lidas, mas vividas em comunhão.
Por isso, convido você, leitor, a percorrer estas páginas como quem caminha pela Estrada do Condado: aberto ao inesperado, disposto a aprender, pronto para se surpreender. Que cada capítulo seja não apenas reflexão intelectual, mas também inspiração para a vida.
Porque, no fim das contas, Tolkien nos ensinou algo simples e eterno:
“Ainda há bem neste mundo, e vale a pena lutar por ele.”
E é por esse bem — pela amizade, pela esperança, pela imaginação — que seguimos juntos.
Daniel Cossi (Fundador da Sociedade Tolkien Brasileira)
1. A Força do Mito na Obra de Tolkien
A literatura de J.R.R. Tolkien atravessou o século XX e permanece viva no imaginário coletivo até hoje. O Hobbit e O Senhor dos Anéis não são apenas histórias de fantasia; são mitos modernos, narrativas que oferecem sentido, inspiração e valores que dialogam com qualquer cultura. Não por acaso, muitos leitores, estudiosos e filósofos buscaram, ao longo das décadas, interpretações filosóficas dessas obras.
Mas aqui surge uma questão essencial: quando olhamos para Tolkien através de lentes filosóficas, estamos iluminando a obra — ou estamos cobrindo sua essência com filtros que não lhe pertencem? Até que ponto a filosofia ajuda, e até que ponto desvia do que Tolkien já colocou de forma clara, como ensinamento ético, moral e humano?
Tolkien era, antes de tudo, um filólogo e criador de mitologias. Seu objetivo nunca foi o de fundar uma escola filosófica, mas o de contar histórias que falassem ao coração humano. E essas histórias carregam valores que emergem diretamente da narrativa, sem necessidade de qualquer mediação teórica.
Esses elementos não dependem de interpretação filosófica. Eles são universais, claros, acessíveis, e encontram eco em qualquer leitor.
Aqui reside uma chave importante: Tolkien construiu mitos, não tratados. E o mito, diferente da filosofia, não exige uma lógica sistemática; ele fala diretamente ao imaginário, despertando emoções e valores sem precisar de justificativa racional. É essa dimensão mítica que permite que sua obra dialogue com povos tão diferentes ao redor do mundo.
“O mito é mais verdadeiro que a história, pois fala daquilo que é eterno.” – C.S. Lewis
2. A Tentação Filosófica
Ainda assim, ao longo das décadas, não faltaram leituras filosóficas das obras de Tolkien. E todas elas têm, em alguma medida, valor e legitimidade.
Essas leituras enriquecem, mas carregam consigo um risco: reduzir a obra a uma lente específica, limitando sua universalidade. Quando se interpreta Tolkien apenas como um existencialista, ou apenas como um mito cristão, ou apenas como uma metáfora social, perde-se justamente aquilo que o torna grandioso — a capacidade de falar a todos, sem precisar se prender a uma doutrina.
Aqui está o ponto de equilíbrio: a filosofia pode abrir caminhos de leitura, mas não pode se tornar a única porta de entrada. Usada como complemento, ilumina. Usada como substituto, obscurece.
3. Tolkien e C.S. Lewis: O Mito contra a Alegoria
É curioso perceber que Tolkien foi contemporâneo e amigo de C.S. Lewis, autor de As Crônicas de Nárnia. Enquanto Lewis assumia abertamente a intenção alegórica e cristã em sua obra — cada personagem carregando símbolos claros de sua fé — Tolkien rejeitava esse caminho. Para ele, a força da literatura estava em ser mito, não alegoria direta.
Esse contraste entre ambos reforça ainda mais a singularidade de Tolkien. Se Lewis buscava conscientemente transmitir uma visão teológica, Tolkien acreditava que os valores éticos e espirituais surgiriam naturalmente do mito, sem necessidade de impor uma chave de leitura.
Tolkien escreveu certa vez: “Eu detesto alegoria em todas as suas formas, e sempre a detestei desde que fiquei velho e cauteloso o bastante para detectar sua presença.” (Prefácio de O Senhor dos Anéis)
4. Paralelos Filosóficos Clássicos
Tolkien pode ser colocado na linhagem dos grandes mitopoetas — Homero, Dante, Milton — mas também dialoga com tradições filosóficas que atravessaram séculos.
Aqui, as próprias palavras de Tolkien ressoam como ecos filosóficos:
“Desejo que o Anel nunca tivesse vindo a mim. Desejo que nada disso tivesse acontecido.” – Frodo “Assim desejam todos os que vivem para ver tempos como este. Mas não cabe a eles decidir. Tudo o que temos de decidir é o que fazer com o tempo que nos é dado.” – Gandalf (A Sociedade do Anel)
Essa fala de Gandalf ecoa Aristóteles (a ética da ação justa no tempo presente) e Kierkegaard (a decisão existencial que dá sentido ao instante).
5. Ecos na Filosofia Moderna
Além dos clássicos, a modernidade também ilumina a leitura de Tolkien:
E também aqui Tolkien nos dá frases que poderiam estar em tratados filosóficos modernos:
“O mundo está realmente cheio de perigos, e há nele muitos lugares escuros; mas ainda há muito que é belo, e embora em todas as terras o amor agora esteja misturado com a dor, talvez ele cresça ainda mais.” – Haldir (A Sociedade do Anel)
Essa fala poderia ser lida tanto por Camus (a coexistência do absurdo e da beleza) quanto por Arendt (a esperança como resistência).
6. O Hobbit e a Filosofia da Simplicidade
Embora muitas vezes eclipsado pela grandiosidade de O Senhor dos Anéis, O Hobbit carrega em si a semente dessa mesma filosofia mítica. Bilbo é o anti-herói perfeito: pequeno, comum, relutante, mas chamado a uma jornada que transforma sua visão de mundo.
“Você pode encontrar coisas que não procurava, se sair pela porta.” – Bilbo (O Hobbit)
Essa frase simples ecoa tanto a filosofia aristotélica da experiência prática quanto a noção kierkegaardiana do salto para o desconhecido.
Thorin, em seus momentos finais, também nos entrega uma reflexão quase estoica:
“Se mais de nós valorizássemos comida, alegria e canções acima do ouro acumulado, o mundo seria mais alegre.” – Thorin (O Hobbit)
Aqui, Tolkien oferece uma crítica direta à ganância e à ilusão do poder, tão atual quanto qualquer tratado moral. Gandalf, por sua vez, sintetiza a filosofia hobbit:
“Alguns acreditam que é apenas grande poder que pode manter o mal sob controle. Mas isso não é o que eu descobri. Eu descobri que são as pequenas coisas, os atos cotidianos de pessoas comuns, que mantêm a escuridão afastada.” – Gandalf (O Hobbit)
Essa fala poderia estar em Hannah Arendt, como uma defesa da dignidade do ordinário diante da banalidade do mal.
7. A Neutralidade Universal
Tolkien não quis ser filósofo. Ele quis ser contador de histórias, construtor de mitos, criador de mundos. E é justamente essa neutralidade — essa recusa em vincular sua obra a um sistema de pensamento fechado — que dá à sua literatura um poder tão duradouro.
Os valores presentes em O Senhor dos Anéis ou O Hobbit não são exclusivos de uma cultura, religião ou filosofia. Eles pertencem à humanidade como um todo.
Essa neutralidade não significa ausência de valores, mas sim universalidade. Sam Gamgi pode ser visto de múltiplas formas:
E nas palavras do próprio Sam:
“Ainda há bem neste mundo, e vale a pena lutar por ele.” – Sam (As Duas Torres)
Essa frase resume toda a filosofia prática que Tolkien quis transmitir: simples, direta, universal.
8. E então o que pensar e entender...
É legítimo e até fascinante interpretar Tolkien à luz de correntes filosóficas. Essas leituras expandem horizontes e mostram a riqueza da obra. Mas é importante não esquecer que os valores essenciais já estão lá, claros e acessíveis: a amizade, a coragem, a humildade, a luta contra a corrupção, a esperança.
Tolkien não escreveu tratados de filosofia. Escreveu histórias. E são justamente essas histórias, com sua força de mito e sua linguagem simples, que carregam em si um poder transformador.
Talvez o maior legado de Tolkien seja este: ensinar ética, moral e sentido de vida sem precisar de filosofia — apenas com a magia da narrativa.
E é justamente por isso que sua obra continua a ser lida, estudada e amada por pessoas de todas as culturas e épocas: porque não pertence a uma escola, mas à humanidade.
9. Ecos em Paralelo: Tolkien e os Filósofos
Para concluir esta reflexão, vale observar como as palavras de Tolkien — pela voz de seus personagens — dialogam diretamente com grandes pensadores da filosofia. Não se trata de afirmar que Tolkien foi filósofo, mas de perceber que seus mitos tocam nas mesmas perguntas fundamentais da humanidade.
10. Epílogo
Ao ler Tolkien em paralelo com filósofos, não criamos um manual de interpretação, mas uma constelação de ecos. As vozes de Frodo, Gandalf, Sam, Bilbo ou Thorin encontram ressonância em Platão, Aristóteles, Sêneca, Kierkegaard, Nietzsche, Camus ou Arendt.
Isso mostra que a Terra-média não é apenas um mundo fictício, mas um espelho mítico das mesmas questões que a filosofia vem perguntando há milênios:
Tolkien nos lembra, assim, que não é preciso ser filósofo para ensinar sabedoria. Basta ser contador de histórias — quando essas histórias são grandes o suficiente para carregar dentro delas a alma da humanidade.